人間 (Nin–guém)
Silas de Paula[1]
Resumo:
Este artigo aborda questões relativas ao Realismo Especulativo e o Universo das Coisas. Com base em autores como BRYANT, L., SRNICEK, N., HARMAN, G. SHAVIRO, S. STEYERLS., entre outros, propõe um distanciamento das interpretações das práticas artísticas que têm priorizado os elementos linguísticos frente aos aspectos físicos da obra, para um retorno à materialidade do objeto e procura demonstrar que, na prática, a realização de mostras e eventos contemporâneos atestam a simpatia de fotógrafos e artistas à nova abordagem filosófica.
Abstract
This article addresses issues relating to Speculative Realism and the Universe of Things. Based on authors such as BRYANT, L., SRNICEK, N., HARMAN, G. SHAVIRO, S. STEYERLS, among others, proposes a distancing of the interpretations of the artistic practices that have prioritized the linguistic elements instead of the physical aspects of the work, as a return to the materiality of the object and seeks to demonstrate that, in practice, the making of contemporary shows and events attest to the sympathy of photographers and artists for the new philosophical approach.
What if things could speak? What would they tell us? Or are they speaking already and
we just don’t hear them? And who is going to translate them?[2]
- “Nin-guém” é o som do ideograma japonês para “ser humano” (人間).
Isto me foi dito pela arquiteta e curadora Rosely Nakagawa, depois da uma apresentação conjunta da pesquisadora Renata Marquez e da artista Nydia Negromonte no 7o Festival de Fotografia de Tiradentes – Foto em Pauta, este ano. Estava fascinado com o trabalho da artista, discutindo a relação da ausência/presença humana e objetos/coisas quando Rosely me perguntou se eu conhecia o som, em japonês, para ser humano – daí a epifania que resultou no título deste artigo: 人間é uma imagem (ideograma) que nos representa e, ao mesmo tempo, cria em nossa língua um paradoxo sonoro conceitual.
São discussões que me interessam no momento e que colocam em xeque o antropocentrismo – o ser humano como centro das coisas – e o correlacionismo[3] apontado por Quentin Meillassoux (2008), me levando com esta quasi-percepção (som/imagem) ao ponto de partida deste artigo. Penso que a denominada Virada Especulativa/Realismo Especulativo nos dá dicas de algo, aparentemente, novo. Para os filósofos desta tendência, o que tem sido mais comum nos textos da área é “a concentração no discurso, cultura, consciência, poder ou ideias como aquilo que constitui a realidade.”[4] E como, nas interpretações das práticas artísticas temos priorizado os elementos linguísticos frente aos aspectos físicos da obra, tento aqui retornar à materialidade do objeto. Embora a arte, entendida da maneira anterior demonstre, ao interpretar a realidade a partir de questões subjetivas, internas ao assunto, que tais abordagens permanecem alinhadas com áreas filosóficas e teóricas de um consistente passado recente ou, mais especificamente, à revolução filosófica iniciada por Immanuel Kant. Mas, Federica Matelli questiona:
“O sujeito pensante define a realidade dando origem a um pensamento absolutamente ‘antropocêntrico’, enquanto o conhecimento e reflexão sobre o ‘objeto em si’ estão confinados a um esquecimento resignado”. (MATELLI. 2015, p. 2)
Segundo os autores alinhados com a nova perspectiva do Realismo Especulativo, a postura correlacionista não dá [mais] conta do momento contemporâneo e é preciso rever as questões sobre o numênico e o fenomênico (Kant). O fato de acreditarmos que só temos acesso ao mundo fenomênico, à significação (correlação) das coisas e que o numênico está fora de alcance é, agora, colocado em xeque, ou como o próprio termo argumenta, especulado. E isto é demonstrado, na prática, com a realização de mostras e eventos[5] que atestam a simpatia de artistas com o realismo especulativo. Ou vice-versa: isto é, a argumentação filosófica contemporânea sobre arte e sua relação com a virada especulativa busca sua fundamentação, também, nos trabalhos artísticos. Como sou fotógrafo, e não filósofo, me interessa a especulação sobre como tais discursos afetam a arte/fotografia. A constante [re]conceituação deste tipo de prática demanda uma renegociação perpétua de sua relação com o “real” e o afetivo. Segundo alguns autores, dado o privilégio cultural da arte contemporânea como local de negociação entre o sensorial e o conceitual, é compreensível que artistas e fotógrafos tenham acolhido a convergência do Realismo Especulativo com a Estética.[6] Mackay (2015) — entre outros — levanta diversos questionamentos, sobretudo em relação a uma “série de sincronicidades sintomáticas”, que ele associa à destituição do papel mediador da experiência humana. Para Mackay, a convergência do anti-correlacionismo com reflexões sobre o planeta resulta em um movimento que afasta o foco do primado da intuição e da interpretação, algo que ele interpreta como uma tendência antiestética. Nesse contexto, o conceito de Antropoceno, entendido por como uma era em que actants não-humanos e cumplicidades materiais assumem o protagonismo —, revela as grandes redes desumanas nas quais estamos enredados, mas que permanecem difíceis de figurar artisticamente.
Embora, como fotógrafo, concorde parcialmente com Mackay sobre os desafios de representar essas redes, acredito que a arte sempre enfrentou — e continua enfrentando — o desafio de figurar fenômenos complexos desde seus primórdios. A luta dos artistas para capturar e traduzir tais dinâmicas não é nova, mas intensificou-se diante da complexidade das redes globais contemporâneas e do impacto humano no planeta. O Antropoceno, frequentemente descrito como uma nova época geológica marcada pela intensificação das atividades humanas no planeta, teve sua definição formal adiada para 2018 pelos especialistas da área. Para alguns críticos, a oficialização do termo seria mais política do que científica. Contudo, é amplamente aceito que as atividades humanas, especialmente a partir da segunda metade do século XX, passaram a modificar os processos geológicos de maneira mais intensa do que as forças naturais. Esse período, muitas vezes relacionado ao início da era nuclear e à proliferação de materiais sintéticos, oferece marcadores claros que refletem a “força tectônica” humana. Embora evite polemizar sobre a transição formal para uma nova era geológica, prefiro aguardar o consenso da comunidade científica. No entanto, é evidente que a força destrutiva dominante no planeta não está mais restrita aos movimentos das placas tectônicas ou aos processos naturais, mas reside na ação humana. Um exemplo emblemático desse impacto é o “plastiglomerado”, uma nova formação rochosa composta por sedimentos minerais, concreto e plástico, que encapsula literalmente a marca humana na geologia do planeta. Esse material, embora ainda pouco comum, já é considerado um potencial marcador do Antropoceno, simbolizando o legado físico de nossas ações no ambiente. O desafio de figurar e compreender essas transformações não é apenas científico, mas também estético e ético. A arte, nesse sentido, permanece como um campo crítico e vital para imaginar e dar forma ao Antropoceno, nos desafiando a entender “um mundo conosco” — enquanto ainda podemos moldá-lo
Figura 1. Plastiglomerado[10]
Para Steyerl (2010), são novos fósseis que acumulam forças petrificadas, ou na concepção forense, um objeto como testemunha. Citando Benjamin, a autora argumenta que essas “coisas são feitas para falar… Nunca são objetos inertes, itens passivos ou cascas sem vida, mas consistem de tensões, forças, poderes ocultos, todos sendo constantemente trocados” (STEYERL, 2010, p. 6). Com relação à tendência antiestética colocada por Mackay, creio que, em determinados aspectos, há um embate entre a fotografia e arte – a eterna relação conflituosa entre ambas. Dissemos em outro artigo que a fotografia contemporânea libertou-se de orientações prévias, de como relacionar-se com o sensível, e partiu para a invenção de olhares. Um dos caminhos passa, então, por uma reelaboração da experiência estética – daquilo que constitui a aisthesis e as sensorialidades experimentadas – e por uma reconfiguração no âmbito da poética – entendida como a dimensão produtora dessas sensibilidades, as maneiras de fazer, a poiesis. (DE PAULA, et alli, p. 2013)
A fotografia é um milhão de coisas, mas se pensarmos naqueles fotógrafos que procuram as galerias e pretendem acessar o mundo da arte há, entre eles também, uma tendência estética[11] que contradiz este movimento antiestético – isto é, existe um pictorialismo aparente escapando da tendência da arte do final do século vinte que exigia um texto conceitual para atestar sua potência. Lógico que o pictorialismo, na fotografia, não é nenhuma novidade, nem limitado pelo estilo ou assunto. Mas são temas e composições projetados para trazer uma sensação de coesão visual. Além disso, muitos fotógrafos voltaram a manipular as imagens. Não mais no processo químico utilizado no passado (alguns ainda o fazem), mas digitalmente, favorecendo um sentido de drama e efeito muito próximo do que um pintor faria para controlar seus materiais. Como eu o fiz na série abaixo:
Figura 2. Anônimos[12]
Silas de Paula, 2014.
Neste sentido, o crítico de arte James Elkins (2015), em uma entrevista à revista Perspective[13] aponta as diferentes abordagens sobre visualidades ao redor do mundo, e critica a postura de historiadores de arte que se submetem à visão hegemônica eurocêntrica sem analisar diferentes sabores (flavors) que existem globalmente. Em seu livro “Theorizing Visual Studies” (2012) que é o resultado da colaboração com estudantes de pós-graduação ao redor do mundo – são sessenta ensaios – Elkins já abordara esses “nós de visualidade”, onde aponta essas diferenças também entre a América Latina e Brasil. Diversos curadores que lidam com fotografia já afirmaram que se sairmos do eixo sul-sudeste encontraremos “imagens não reveladas” e como resultado teríamos a abertura de uma Caixa de Pandora. Como exemplo emblemático é bom lembrar da fotografia Chinesa onde, durante décadas só foram reveladas fotografias oficiais – embora os fotógrafos continuassem com seu trabalho em arquivos ocultos.[14] Com a liberação das imagens há poucos anos, o que surgiu foi uma mistura de tendências sem obediência cronológica aos discursos artísticos hegemônicos, resultando num processo intrigante e instigante dos fotógrafos chineses. No entanto, Matelli (2015) reforça alguns dos argumentos dos novos filósofos do Materialismo Especulativo, argumentando que “a arte contemporânea, circunscrita à crítica discursiva do presente, perdeu … seu papel de poiesis, de marcar o seu tempo e gerar significado.” (MATELLI, 2015, p. 3). O convite, então, é para abandonar o regime estético, postulado por Rancière para um novo caminho “poético-especulativo”.
O recente surgimento do Realismo Especulativo, com debates nas várias áreas, não tem seu futuro ainda claro, como afirmam os próprios editores do “The Speculative Turn: Continental Materialism and Realism (2011), mas uma possibilidade intrigante para as coisas e o ser humano daqui por diante. E, esta minha assemblage de autores e imagens não dá conta da complexidade do processo. É só o início de um caminho que preciso percorrer.
- Uma “filo-grafia” possível.
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, rio como um regato que soa fresco numa pedra… As cousas não tem significação: tem existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. (Alberto Caeiro)[15]
Conversando com Rosely Nakagawa sobre os trabalhos apresentados pela Nydia Negromonte, tentei relacioná-los a essas leituras recentes sobre Realismo Especulativo, Teoria dos Objetos, Universo das Coisas, etc.[16] Isto porque, como disse anteriormente, sempre tive a sensação de que grandes artistas têm um certo tino premonitório[17] e um dos objetivos dos acadêmicos é transformar este processo em um “constructo teórico”. Para mim, o embate entre esses dois caminhos – produção de arte e pesquisa acadêmica – pode nos ajudar a perceber o mundo da arte de uma forma mais criativa e consistente. No entanto, trazer a discussão para uma abordagem teórica recente, complexa e que funciona como um grande guarda-chuva – além disso, considerada por alguns como uma postura acrítica – é um tanto arriscado. Mas é parte da tentativa e aprendi que a produção do conhecimento só se dá no conflito e concordo com Mia Couto: “todos nós somos impossíveis tradutores de sonhos” (COUTO, 2011, p. 12). E sinto no trabalho da Nydia – entre outros – esta “tradução de sonhos” das coisas, com respostas vivas e materiais às questões colocadas por Hito Steyerl junto ao título deste artigo.
Se concordarmos com Arthur Danto (2006) a Pop Art, por volta de 1960, conseguiu calar Greenberg, fazendo com que a arte deixasse para trás sua identidade como objeto estético para se tornar um objeto teórico, tendo como produto emblemático da nova postura o Brillo Box, de Warhol. Portanto, a pintura estava morta e a fotografia colocada, mais uma vez, contra a parede: “A instância perfeita do múltiplo-sem-um-original, a fotografia – em seu status estrutural como cópia – demarcou o local dos diversos desmoronamentos ontológicos.” (SQUIERS, 2014). Falar em pintura e fotografia documental em alguns ambientes no final do século vinte era, praticamente, uma heresia. Bom, as coisas estão mudando novamente.
Na realidade, coisas, objetos e natureza não são novidades artísticas ou imagéticas. Mas, se pensarmos que uma boa imagem é uma imagem que arde e, apesar de toda percepção ser paradoxal, estou um pouco cansado de ver imagens e trabalhos de arte que exigem, a priori, um texto conceitual ao lado. Prefiro aqueles que nos afetem até à ordem do indizível, e foi o que me aconteceu com os trabalhos da Negromonte:
“Além dos manuseios das frutas, da água, dos ingredientes, o fato de ser matéria natural enfatiza o toque, o sentido gustativo e o olfato, as mãos que fazem e pegam, os olhos que se divertem. Não se trata de transformar alguma ‘natureza morta’ em cozinha viva; trata-se de gerar algum prazer, em uma síntese dos sentidos invocados.” (HUCHET. 2016, p. 24)[18]
Figura 3 – Posta[19]
Nydia Negromonte – Fotos de hortaliças isoladas da instalação POSTA realizada na Bienal de São Paulo (2012).
Figura 4 – Posta[20]
Nydia Negromonte
A instalação, que apresenta um grande número de hortaliças em sua materialidade, me remete ao texto de Hito Steyerl (2010), onde seus argumentos nos fazem perceber que o que vemos na mesa são “coisas como eu e você”, e nos lembram que a “percepção comum de uma coisa” nada mais é do que o resultado da nossa luta sobre representação, onde continuamos com um distanciamento, uma postura correlacionista (antropocêntrica) com uma divisão nítida: “aqui sujeito – lá objeto”. E Steyerl continua:
“Mas, e se a verdade não estiver nem no representado, nem na representação? E se a verdade estiver na sua configuração material? … Participar de uma imagem – em vez de, simplesmente, identificar-se com ela – talvez pudesse abolir esta relação. Isto significaria participar de sua materialidade, bem como dos desejos e as forças que se acumulam. Que tal reconhecer que esta imagem não é algum tipo de equívoco ideológico, mas uma coisa … animada pelos nossos desejos e medos – a personificação perfeita de suas próprias condições de existência?” (STEYERL, 2010, p. 4)
Portanto, para a autora, se a identificação é para ser feita com a imagem como coisa, não podemos pensá-la como representação; i.e não é para serem vistas, contempladas ou interpretadas, mas para serem percebidas como materiais, locais temporários de participação compartilhada, que se abrem às formas alternativas de conexão, comunicação e relações.
A ideia aqui é apresentar o início de um projeto ligado a essas questões, uma tentativa de uma “filo-grafia” ou a procura de um novo regime “poético-especulativo”, assentado no conceito de práxis poética (poiesis).[21] Coisas que vemos como fósseis, como rastros de afetos ou de processos de mudanças no mundo. Como não sou filósofo, a ideia em gestação é fazer imagens com pequenas citações ao lado delas – uma “filo-grafia” possível. Não como explicação ou tradução linguística, mas como pensamentos que se unem imageticamente, sem nenhum texto mais longo. Alguém me disse uma vez, mas nunca procurei comprovar, que W. Benjamim afirmara que “somos todos citações” e que ele gostaria de fazer um livro só com elas. Também não sei se alguém já o fez, mas é o que vou tentar. E apresentar essas ideias em palestras, aulas e grupos de estudo faz parte do meu processo de criação. O compartilhamento de processos me faz pensar melhor.
As primeiras tentativas surgiram por questões afetivas. Minha mulher, Nívea, tem pequenas coisas que sempre guarda. Fiz então uma série de oito imagens, utilizando um scanner e denominei de “Afetos: Pequenos guardados interessantes da Nívea”.
Figura 5 – Silas de Paula. Afetos: Pequenos guardados interessantes da Nívea.
Mas, como objetos afetivos – por mais importantes que fossem para mim – não davam conta do que estava lendo e pensando academicamente. Nesta época (2104) surgiu a oportunidade de participar de um projeto, com outros fotógrafos, sobre o processo de desertificação no sertão do Ceará, mais especificamente, nas redondezas de Irauçuba. Havia fotografado aquela região em 1984, o que resultou numa exposição no Centro Cultural São Paulo. Trinta anos depois a tragédia da seca continuava a mesma – um déjà-vu doloroso. Sem saber o que fazer, pensando na “fadiga da imagem”, pois já tinha visto e mostrado, exaustivamente, o sertão seco, procurei nas minhas leituras e conversas o “objeto”. E lá encontrei meus “fósseis”, rastros de um processo que não muda, mas que – teoricamente – se transformou numa tentativa de tirar do silêncio a identidade material e física de coisas marcantes do solo de uma região e sua ação inversa sobre o sujeito que as percebe. Por isso o título do artigo (人間) em japonês: Ser Humano/Ninguém.
Figura 6 – Silas de Paula: Objetos
É um trabalho em processo, minhas discussões vão continuar até sua finalização. Além disso, a semelhança com outros trabalhos reforça a sensação de que há uma preocupação sensível com esses caminhos. Pensar o Universo das Coisas, sua relação com novas propostas filosóficas e tentar incluir tudo isto nas nossas imagens é um processo, no mínimo, instigante.
Outros fotógrafos já vêm fazendo isto. Iana Soares, cearense, tem um trabalho neste sentido e ficamos espantados com a semelhança imagética, apesar de propostas diferentes.
Figura 7 – “Inventário de Coisas Insignificantes” …fragmentos do meu sul e meu norte.[22]
Iana localiza seus objetos com dados precisos e utiliza um título como âncora textual, enquanto eu delimito, simplesmente, sua região geográfica mais ampla na apresentação geral do trabalho. Suas imagens são poéticas, as minhas são duras. Ela traz o banal de uma forma colorida à vida e o denomina de “Inventário de Coisas Insignificantes” …fragmentos do meu sul e meu norte. Nele ela joga com a ideia do que é importante ou não na nossa trajetória. Por si só, segundo ela, nada tem qualquer significado antes que este seja atribuído. Talvez aí, resida a diferença: um olhar acadêmico procurando seu objeto teórico e o outro, sensível, que olha a vida de maneira mais criativa. Esses encontros sempre colocam em xeque o nosso modo de ver.
A Ontologia Orientada a Objeto (OOO), portanto, inspira uma retração da prática expandida e um retorno à autonomia do objeto e à emoção filosófica. Uma experiência estética e filosoficamente intrigante:
“Esta concepção … considera o concreto e o abstrato como termos relativos e o estético e o conceitual como inextricavelmente entrelaçados. Uma prática que não investe mais a sua fé na promessa essencial da estética como tal, mas reconhece a verdadeira força e tração das imagens, empregando experimentalmente técnicas de modelagem, formalização e apresentação de forma que, simultaneamente, ‘engendra novos domínios de experiência’ mapeando-os através de uma ‘estética reconfigurada’ transdisciplinar e indissociável das condições sócio-técnicas.” (MACKAY et ali. 2014, p. 13)
O debate volta-se, então, para a antiga trincheira epistemológica entre sujeito e objeto. Esta mudança de perspectiva tem consequência de longo alcance. E no que concerne às imagens, esta ação potencial já foi bem explorada – como afirma Steyerl (2010): “Participar da imagem como uma coisa, significa participar de sua potencial ação – uma ação que não é necessariamente benéfica, já que pode ser usada para todos os fins imagináveis.” (p. 8).
Considerações finais
Perceber o processo de construção do Realismo Especulativo como um grande guarda-chuva não é uma tentativa de propor a destruição de todas as hierarquias, mas de reconhecê-las. A questão não é parar de pensar sobre os seres humanos, algo ainda mais premente na atualidade, mas sim começar a olhar com mais atenção o papel que os não-humanos desempenham na organização de nossas relações sociais de maneiras particulares. Assim uma estética especulativa poderia possibilitar uma teoria e prática não mais investida numa promessa transcendental, mas reconhecer a força real e o movimento das imagens no mundo de hoje. Novos domínios de experiência inseparável de suas condições sociotécnicas que poderiam levar boa parte da universidade brasileira a reconhecer seu iconoclasmo e mudar sua postura em relação às imagens técnicas.[23] Além disso, a luz da fotografia analógica ao ser substituída pelo cálculo, e a lógica figurativa da representação substituída pela simulação, deixou todos perplexos diante de um pseudorrealismo, que insiste na potência conflituosa entre criação e documentação.
O que vemos neste processo é uma proposta de novos modos de pensar estético que se recusam a hipostasiar a experiência humana como a categoria mestre através da qual o mundo deve ser interpretado. Para tanto, a dimensão especulativa do pensamento estético, bem como da arte e do design, podem muito bem envolver uma tensão produtiva – como dissemos em outro artigo[24] – onde a fotografia e o gesto de fotografar operam entre a estética e a política em momentos de rotura.
Na perspectiva que tentei traçar aqui, esses momentos são da ordem de uma resistência. Resistir não como forma de criar dicotomias, opor organizações sensíveis em detrimento de outras, uma modalidade de atuação no mundo contra outra. A resistência é compreendida mais na dimensão de uma fenda ou de uma brecha que se abre, para desordenar o que está posto.
Referências bibliográficas
BRYANT, L., SRNICEK, N., HARMAN, G. (Eds.). The Speculative Turn: Continental Materialism and Realism. Melbourne, re.press, 2011.
COUTO, Mia. “Línguas que não sabemos que sabíamos. In, Mia Couto, E se Obama fosse africano? E outras intervenções. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 9-21.
DANTO, Arthur. Após o fim da arte. São Paulo: Odysseus, 2006.
DE PAULA, Silas, OLIVEIRA, Érico e LOPES, Leila. “Imagens que Pensam, Gestos que Libertam: Apontamento sobre Estética e Política na Fotografia.” In BRASIL, A., MORETIN, E., LISSOVSKY, M. Visualidades Hoje. Salvador: Compós/EDUFBA. 2013
Elkins, J. McGuire K., Burns, M., Chester, A., Kuennen, J. (eds.). Theorizing Visual Studies. New York: Routledge,2013.
HUNG, Wu. “Between Past and Future: A Brief History of Contemporary Chinese Photographs”, in https://lucian.uchicago.edu/blogs/wuhung/files/2012/12/2004.
LATOUR, B. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. New York: Oxford Press University, 2005.
MACKAY, R., PENDRELL, L., TRAFFORD, J. (eds.). Speculative Aesthetics. Falmouth, UK: Urbanomic Media Ltd, 2014.
MATELLI, Federica (2015). «Lo cotidiano en las prácticas artísticas contemporáneas: hacia el régimen poético-especulativo. El caso de Nicolás Lamas». En: Pau ALSINA y Ana RODRÍGUEZ GRANELL (coord). «Art Matters II». Artnodes. N.º 16, págs. 66-76. UOC [Fecha de consulta: dd/mm/aa]
MEILLASSOUX, Quentin. After Finitude. London: Bloomsbury Publishing Plc, 2008.
NEGROMONTE, Nydia. D.U.C.TO: Nydia Negromonte. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2016.
SHAVIRO, Steven. The Universe of Things: On Speculative Realism. Minneapolis: The Univ. of Minnesota Press, 2014.
SQUIERS, Carol. What is a Photograph? New York: Prestel, 2014.
STEYERL, Hito. A Thing Like You and Me. http://www.e-flux.com/journal/a-thing-like-you-and-me/ (2010)
_____________ The Language of Things. http://eipcp.net/transversal/0606/steyerl/en (2006)
ZOLNERKEVIC, Igor. “A Era Humana”, in Revista Pesquisa Fapesp, Ed. 243, maio de 2016
[1] Fotógrafo, Doutor pela Loughborough University, Inglaterra, e professor do Instituto de Cultura e Artes – ICA da Universidade Federal do Ceará.
[2] “E se as coisas pudessem falar? O que nos diriam? Ou elas já estão falando e nós, simplesmente, não ouvimos? E quem vai traduzi-las?”. Hito Steyerl, 2006.
[3] É a ideia de acordo com a qual só temos acesso à correlação entre pensamento e existência (ser) e nunca a cada termo considerado em separado do outro. O termo se refere à tendência da filosofia ocidental, desde Kant, de basear todo o discurso filosófico em questões cognoscíveis e rejeitar as proposições metafísicas, já que elas abarcam o tema desde a perspectiva de referência a de experiência, particularmente como uma experiência fenomenológica. Mais precisamente, procura salientar o refinamento que o correlacionismo traz ao idealismo, notadamente, de que nós não reduzimos tudo a uma única origem, mas a uma relação dual. (Sujeito/objeto, existência/ser, etc.), da qual é impossível escapar.
[4] Ver Bryant, L. et alli (2011)
[5] Exemplos emblemáticos: a exposição e o simpósio internacional no Museu Friderichanum de Kassel, com curadoria de Susanne Pfeffer, com o título “Especulações sobre Materiais Anônimos” 2013/2014 e a 32a Bienal de São Paulo. Ver, também, matéria sobre o novo curador da Bienal de São Paulo, Gabriel Pérez-Barreiro, na Folha de São Paulo. 08/04/2017.
[6] Ver Mackay, R. et alli (2015)
[7] Ver por exemplo, Latour, B. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. New York: Oxford Press University, 2005.
[8] A relação antiestética ou [a]estética já foi bem discutida em outros momentos da arte, mas hoje há algo novo que arrepia os acadêmicos tradicionais: boa parte das pesquisas e debates surgem e se sedimentam em comunidades on-line. Ver, por exemplo, Cybernetic Culture Research Unit (CCRU), Pli – The Warwick Journal of Philosophy, a revista Collapse, etc. Além disso, as antigas questões sobre “multi-trans-interdisciplinaridade” que eram levantadas na Academia estão, realmente, presentes nesses grupos, formados por pessoas de diversas áreas e não só por Ph.Ds. É claro que, como grupos antenados com as questões virtuais, eles criam filtros para a inserção de novos membros.
[9] Ver Zolnerkevic. 2016, p. 53
[10] Ver http://www.culligan.es/blog/aparecen-rocas-formadas-con-plastico-en-una-playa-de-hawai/
[11] Para ficar em dois nomes, ver os trabalhos dos fotógrafos João Castilho e Pedro David.
[12] Ver selecionados para o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger, Fundação Cultural do Estado da Bahia. 2017. http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/2017/05/12639/Sai-resultado-do-Premio-Pierre-Verger.html
Célius, C, Raux S. and Venturi. V. “Interview with James Elkins”: Disponível em: <https://perspective.revues.org/6056?lang=pt> 2015. Acesso em: 06/04/2016.
[14] Ver Wu Hung, 2004.
[15] Disponível em http://www.citador.pt/poemas/o-misterio-das-cousas-alberto-caeirobrheteronimo-de-fernando-pessoa. Acesso em 03/04 2061.
[16] Ver, por exemplo: Mellassoux, Q. (2008); Bryant, L., Srnicek, N. and Harman G. (2011); Shaviro, S. (2014).
[17] Ver, por exemplo, as séries “O Jardim” e “Madeira de Lei” do fotógrafo Pedro David.
[18] Huchet, Stéphane. “Vegetação Mnemotécnica”, in NEGROMONTE, Nydia. D.U.C.TO: Nydia Negromonte. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2016
[19] Ver Negromonte, 2012, pg. 236
[20] Idem, pg. 32/33.
[21] Poiesis mantém um matiz de experiência e um nexo com o senso comum … que tem uma base social e ocorre apenas quando o nosso sentido torna-se político e economicamente contemporâneo. (Matelli. 2015, p. 4)
[22] Ver “Encontros de Agosto”. Centro Cultural Dragão do Mar. Fortaleza, Ce. 2016.
[23] O grupo de representantes dos Programas de Pós-graduação em Comunicação que faz parte da área de avaliação da CAPES – Ciências Sociais Aplicadas, considera as imagens como produção, simplesmente, técnica excluindo qualquer trabalho, nesta modalidade, como produção de conhecimentos. Ver http://capes.gov.br/avaliacao
[24] Ver DE PAULA, et alli, (2013)